Piano nº11 – Piano Plié

o piano Brasil do Estúdio de Ballet Cisne Negro.

Algumas pessoas falam que existem certas habiliades que, ou você começa desde pequeno, ou esquece, nunca mais vai conseguir tê-las. Tocar piano é uma delas. Ou você começa desde os 3 ou já era. Que horror! Fico pensando quanto tempo eu perdi ouvindo esse tipo de gente amarga. Eu tinha 21 anos quando resolvi estudar piano para valer. Não sou, nem pretendo ser nenhuma concertista, mas estou chegando devagar no meu caminho, leio partitura e cifras até complicadas, improviso ainda é uma montanha a se escalar, mas um dia eu chego lá. Se quando menina tivesse escutado mais o meu coração e menos essas pessoas chatas, talvez teria convidado o piano para sair mais cedo, mas fiquei de paquera por muito tempo. Devia ter pedido em casamento muito antes, mas… não se pode chorar pelo leite derramado.

É óbvio que estudar alguma coisa desde pequeno é muito melhor, o corpo assimila de outra forma e aquilo fica incorporado naturalmente na pessoa. Mas não existe tempo nem calendário para nossas vontades e nossos desejos, muito menos os de ordem artística. Outra habilidade sobre a qual falam essa mesma bobagem é o ballet.

O post de hoje tem um caráter muito especial para mim, é um post dançarino. Não que eu saibar dançar, muito pelo contrário, mas quando entrei na nossa locação tive uma sensação familiar. Cheguei no Estúdio de Dança Cisne Negro e me reconheci em muita coisa da escola de dança que existe há mais de 50 anos e é, talvez, a mais famosa escola de ballet do Brasil. As salas, espelhos e barras, as meninas de meia calça rosa que andam com os pés abertos, que nem pato. As professoras gritando “5…6…7…8…” e a música por todos os lados.

Na minha casa, onde cresci em Rio Claro, só se falava em ballet. Minhas duas irmãs dançavam e aquilo era a vida delas. Por consequência, acabou sendo a vida da minha mãe, que sempre nos apoiou, e de meu pai, que foi arrastado de lambuja para todos os recitais, dos meus 5 anos até hoje, e, assim, acabou gostando. Até eu entrei nessa, fiz uns aninhos, mas vi que não era para mim. Montei uma banda de rock e fui tocar Deep Purple, Jimi Hendrix e Eric Clapton. Era revoltada, rebelde sem causa, e gostava de preto, nada de rosa.

Mas de tanto respirar dança em casa, conheci muitos repertórios e histórias de bastidores das bailarinas e, sem que eu soubesse, acabei entendendo bastante do assunto, tudo por osmose. Uma irmã parou de dançar, a outra dança até hoje e fez disso sua vida, foi para Londres estudar ballet clássico e jogar a moeda da sorte dela na terra da rainha. Este post então vai para ela e para as infinitas possibilidades do que ela pode ser.

Luana Ferreira e Gustavo Lopes (foto: Débora Peroni)

Luana Ferreira e Gustavo Lopes (foto: Débora Peroni)

O Estúdio Cisne Negro fica na rua das Tabocas, na Vila Beatriz; foi fundado graças a uma eterna apaixonada pela dança chamada Hulda Bittencourt e seu marido Edmundo. Nascida em Santa Cruz do Rio Pardo, desde criança ela sonhava em ser bailarina. Até que, na década de 50, teve aulas com a bailarina russa Maria Olenewa.

A professora russa foi peça fundamental para introdução do ballet clássico no Brasil. Se mudou de Moscou para o Rio de Janeiro em 1926, onde criou a Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Depois de formada uma base de dançarinos lá, em 1947, ela se mudou para São Paulo e começou a criar esta cultura aqui. Em uma destas classes pioneiras, estava dona Hulda.

Dona Hulda costumava dançar em programas da TV Tupi, mas o marido não era muito fã da idéia, então montaram a escola de ballet que funcionava nos andares inferiores do prédinho que haviam construido – eles moravam nos superiores. Foi o primeiro espaço voltado exclusivamente para a dança em São Paulo, na época a região era só mato.

Em 1977, ela montou o Cisne Negro Cia de Dança que funciona independente do estúdio onde fica a escola. Para o primeiro espetáculo da companhia, em 1977, ela recrutou estudantes de educação física para o elenco masculino, pois não haviam bailarinos homens disponíveis.  A companhia tem 35 anos e é reconhecida mundialmente como um dos grandes nomes do ballet brasileiro no mundo. Na época do governo Collor, a escola passou por muitas dificuldade e quase fechou as portas, mas, escondida do marido, dona Hulda conseguiu um empréstimo no banco e o Cisne Negro pode retomar suas atividades. Dona Hulda até hoje se dedica ao ensino e divulgação desta arte em todo o Brasil e no mundo.

Dentro de uma das salas principais do Estúdio está nosso convidado, um piano de armário da marca Brasil, de madeira castanha escura. Sua afinação está um pouco prejudicada, os pedais também, necessitaria de uma boa reforma e o banquinho está perdido. Eles usam o piano para as aulas de ballet e exames da Royal Academy de Londres, que exige a presença de um pianista durante a prova. Nosso piano acústico não é mais o primo bailarino e foi substituido por um piano digital, que também fica na sala. Mas ele permanece encostado no canto, proibido de ser vendido, para que os alunos não fiquem sem música caso acabe a energia.

Dois destes alunos foram gentis de compartilhar seus respectivos talentos conosco, em nossa visita ao piano Brasil. Luana Ferreira e o Gustavo Lopes começaram a dançar muito novos, estudam no Estúdio e planejam seguir carreira no ballet. O dedicamento deles é visível em seus físicos alongados. Os dois dançando criam linhas lindas que riscam todo o espaço amplo da sala. Eu, Agustin e Débora ficamos de queixos caídos quando os dois começaram a esboçar passos em cima da música que eu tinha apresentado, e que não tinha nada a ver com o repertório que estavam acostumados a dançar. Habituados a dançar com música clássica, eu cheguei com o pop/jazz da cantora e pianista israelense Yael Naim. Fui ver o show dela recentemente e me apaixonei pela leveza de suas composições, então escolhi a musica I Try Hard, de seu terceiro álbum. No começo, os dois estavam apreensivos com o que fazer, mas logo foram se soltando e criaram uma coreografia na hora para nós. O resultado ficou lindo, nosso primeiro vídeo com participações especiais.

Agustin, eu, o piano e Luana Ferreira (foto: Débora Peroni)

Os pianos Brasil são um clássico no país, foram fabricados em São Paulo, mas possuiam a marteleira e mecânica importada. As peças do interior do instrumento vinham de fora ou dos Estados Unidos, da fábrica Elephant, ou da Alemanha, da fábrica Renner.  As partes de madeira eram colocada aqui no país. A marca ficou muito conhecida nas décadas de 50 e 60, porém encerrou suas atividades na década de 70. Atualmente, os pianos Brasil são raros e disputados a tapa pelos restauradores, pois possuem um ótimo som por um preço acessível. O meu piano é um piano Brasil, eu sou fã da marca e é o primeiro post em que eu encontro um piano deste!

Ele pertenceu a pianista Maria Inês de Vasconcellos que ganhou o instrumento novinho de seu pai, aos 8 anos de idade. Ele foi comprado na antiga e antológica loja de música Casas Manon, que atua em São Paulo há 95 anos.  Foi neste piano que Maria Inês concluiu sua formação no Instituto Musical de São Paulo. Ela se tornou pianista especializada em acompanhamento para dança por acaso. Na época, ela trabalhava tocando piano nas aulas de ginástica, muito antes das músicas eletrônicas invadirem as academias fitness. Em um belo dia, a pessoa encarregada pela música no Cisne Negro faltou e ela foi substituí-la. Nunca mais saiu, tem 33 anos de casa. Hoje, ela viaja o Brasil todo acompanhando salas de bailarinos, além de países no exterior como o Canadá.

Maria Inês Vasconcellos acompanhando exames.

Com 65 anos, ela conta que tocar piano para o ballet é completamente diferente dos recitais de pianos normais. Exige um outro tipo de sensiblidade e que o que a preparou para a tarefa foi sua perseverança. Acompanha os bailarinos tocando composições improvisadas na hora. O professor dá um andamento, ou cantarola alguma coisa e cabe a ela traduzir o que se passa na cabeça do coreógrafo em uma música. Dai então os bailarinos vão atrás da música que serve de parâmetro para organizar os passos da dança. O tempo é o martelo corretor.

Há vinte anos, gravou o seu primeiro cd de músicas para aula de ballet. A criatividade e o improviso são seus maiores materiais de trabalho, ela acredita que, sem isso, tocar para dança seria impossível. Quando perguntei o que a dança a tinha ensinado, ela falou que tocava com a alma e isso só era possível porque existia a troca. Quando existe retorno e diálogo entre as artes, seja a dela com o piano, os bailarinos e seus movimentos, o professor e seu ensinamento, é nesta ocasião em que fica fácil tocar com a alma.

E como se fosse obra do destino, Maria Inês tocou para minha irmã dançar em várias aulas e exames há muitos anos. Ela lembrava até da minha mãe sentada no banco da sala, costurando fita na sapatilha, esperando a aula acabar. Nós nunca nos vimos antes, mas o piano tocou que tocou e acabou unindo nossa conversa.

Não tem jeito, estamos todos amarrados com cordas de piano, quanto mais toco e escrevo, mais comprovo esta teoria.

Um beijo, até o próximo piano!

Alessa

23/07/2012

Video: Agustin N. Oroz

Fotos: Débora Peroni

Bailarinos: Luana Ferreira e Gustavo Lopes.

ps1: Um agradecimento especial a Luciana Vigneron do Estúdio Cisne Negro.

ps2: dica quente de nosso leitor Caio Ramos: mudaram de lugar os pianos das estações de metro o da Sé foi para o Brás e o da Tamandatueí foi para o Paraiso! Alguém tem notícias do piano da Luz?? continua aquela coisa horrível!?

(foto: Débora Peroni)